Possibilidade de aquisição da propriedade imóvel por meio da usucapião do locatário: exame dos requisitos da posse ad usucapionem

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9/1/20256 min read

Questão Jurídica:

O inquilino aluga o meu imóvel há mais de 15 anos. Ele poderá requerer a usucapião?

Parecer:

A questão posta à análise demanda um exame aprofundado do instituto da usucapião, de seus pressupostos legais e, fundamentalmente, da natureza jurídica da posse exercida pelo locatário. A análise será segmentada para abordar, primeiramente, os requisitos gerais da usucapião; em segundo lugar, a caracterização da posse no âmbito de um contrato de locação; e, por fim, a excepcional hipótese de alteração do caráter da posse.

Do Instituto da Usucapião e seus requisitos fundamentais

A usucapião é uma modalidade originária de aquisição da propriedade e de outros direitos reais pela posse prolongada da coisa, desde que atendidos os requisitos estabelecidos em lei. O ordenamento jurídico brasileiro, notadamente o Código Civil (Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002), prevê diversas espécies de usucapião, cada qual com seus prazos e requisitos específicos. Contudo, todas elas compartilham um núcleo comum de pressupostos indispensáveis, sem os quais a pretensão aquisitiva se torna juridicamente inviável. Esses requisitos são: a posse contínua e incontestada, o decurso do tempo previsto em lei e, o mais crucial para o caso em tela, a posse exercida com animus domini, ou seja, com a intenção de ser dono.

O animus domini representa o elemento subjetivo da posse qualificada para a usucapião, também conhecida como posse ad usucapionem. Não se trata de uma mera convicção interna do possuidor, mas sim de uma postura exteriorizada, de uma conduta fática que revele, de forma inequívoca, que o possuidor se comporta perante a comunidade e perante o próprio bem como se fosse o seu verdadeiro proprietário. Ele age de modo a desconhecer qualquer poder superior sobre a coisa, não prestando contas a ninguém e exercendo, de fato, os poderes inerentes à propriedade, como usar, gozar e dispor do bem. A posse que se limita ao exercício de um poder de fato sobre a coisa, mas que reconhece a supremacia do direito de propriedade de outrem, não se qualifica para a usucapião.

Adicionalmente, a posse deve ser mansa e pacífica, o que significa que, durante todo o lapso temporal exigido, não pode ter havido qualquer oposição séria, judicial ou extrajudicial, por parte do proprietário ou de terceiros interessados. A continuidade da posse, por sua vez, exige que ela seja ininterrupta ao longo do período prescricional. O decurso do tempo, por si só, ainda que extremamente longo como o período de quinze anos mencionado na consulta — prazo este que corresponde à usucapião extraordinária prevista no artigo 1.238 do Código Civil —, é um requisito meramente objetivo e absolutamente insuficiente se não estiver conjugado com a qualidade subjetiva da posse, ou seja, com o indispensável animus domini.

Da natureza jurídica da posse no contrato de locação

A relação locatícia, regulada pela Lei nº 8.245, de 18 de outubro de 1991 (Lei do Inquilinato), e, subsidiariamente, pelo Código Civil, estabelece um vínculo de natureza obrigacional entre locador e locatário. Em virtude do contrato de locação, o proprietário (locador) cede ao inquilino (locatário) a posse direta do imóvel, para que este o utilize mediante o pagamento de uma contraprestação (aluguel), conservando o locador, para si, a posse indireta. Essa cisão da posse em direta e indireta é uma construção jurídica que permite a coexistência de dois possuidores sobre o mesmo bem, cada qual com uma esfera de atuação distinta, mas ambas derivadas de uma relação jurídica que as subordina.

A posse exercida pelo locatário é, por sua própria essência, uma posse precária. A precariedade advém do fato de que a posse foi recebida em razão de uma relação de confiança e com a obrigação expressa ou implícita de ser restituída ao final do contrato. O locatário, ao firmar o pacto locatício e, principalmente, ao realizar o pagamento periódico dos aluguéis, pratica um ato contínuo e inequívoco de reconhecimento do direito de propriedade de outrem, no caso, o locador. Cada pagamento de aluguel funciona como uma reafirmação de sua condição de mero possuidor direto e de que sua posse se subordina à posse indireta e ao domínio do proprietário.

Dessa forma, a posse do locatário é intrinsecamente desprovida de animus domini. Ele não possui a coisa como se sua fosse, mas sim em nome de outrem, em decorrência de uma permissão ou autorização concedida pelo proprietário. A sua posse é causal, ou seja, está vinculada a uma causa jurídica específica — o contrato de locação — que obsta, por definição, a configuração do elemento anímico necessário para a usucapião. Atos de mera permissão ou tolerância, assim como os atos violentos ou clandestinos, não induzem posse qualificada, conforme expressamente dispõe o artigo 1.208 do Código Civil: "Não induzem posse os atos de mera permissão ou tolerância assim como não autorizam a sua aquisição os atos violentos, ou clandestinos, senão depois de cessar a violência ou a clandestinidade.". A posse do locatário se enquadra perfeitamente na categoria de posse decorrente de permissão contratual, sendo, portanto, uma posse non ad usucapionem.

Da interversão da posse e a excepcionalidade da transmudação de seu caráter

O ordenamento jurídico pátrio consagra o princípio de que a posse mantém o mesmo caráter com que foi adquirida, conforme se extrai do artigo 1.203 do Código Civil: "Salvo prova em contrário, entende-se manter a posse o mesmo caráter com que foi adquirida.". Este dispositivo, contudo, abre uma exceção à regra geral por meio da expressão "salvo prova em contrário". Essa ressalva contempla a possibilidade jurídica da interversio possessionis, ou seja, a interversão ou transmudação do caráter da posse, que ocorre quando a causa da posse se altera de forma substancial.

Para que a posse precária do locatário se converta em uma posse com animus domini, não basta sua mera vontade interna de não mais se considerar inquilino. É imprescindível a ocorrência de um ato externo, ostensivo, público e insofismável de oposição direta ao direito do proprietário. O locatário deve praticar um ato que rompa categoricamente a relação de subordinação que mantinha com o locador, manifestando de forma clara a sua intenção de inverter o título de sua posse e passar a possuir o imóvel em nome próprio e com exclusividade.

Atos que poderiam, em tese, configurar essa interversão incluem, por exemplo, a notificação expressa ao proprietário de que não mais o reconhece como tal e de que não mais efetuará o pagamento de aluguéis por se considerar o novo dono do imóvel; a resistência física e judicial a uma ordem de despejo, fundamentada não em discussões sobre o contrato, mas na alegação de domínio próprio; ou a realização de modificações estruturais profundas no bem, sem qualquer autorização e com o claro intuito de se apossar definitivamente da propriedade, repudiando publicamente qualquer direito do locador.

É fundamental ressaltar que a simples inadimplência dos aluguéis, por si só, geralmente não é considerada um ato suficiente para caracterizar a interversão. A mora no pagamento é, a princípio, um mero ilícito contratual, que enseja a cobrança dos valores e a ação de despejo, mas não altera, automaticamente, a natureza da posse. A posse continua sendo precária, embora inadimplida. A interversão exige um passo além: a manifestação explícita de que a recusa em pagar ou em desocupar o imóvel decorre de uma nova pretensão de domínio sobre o bem.

Caso tal ato de oposição inequívoca ocorra e seja devidamente provado, o marco temporal para a contagem do prazo da usucapião se iniciaria a partir desse momento, e não da data de início do contrato de locação. Todo o período anterior, no qual a posse foi exercida a título de locação (no caso da consulta, os mais de quinze anos), seria completamente desconsiderado para fins de prescrição aquisitiva. Um novo prazo, correspondente à modalidade de usucapião pretendida, teria que transcorrer integralmente a partir da data do ato de interversão.

Conclusão

Diante de todo o exposto, a análise da legislação civil e da doutrina aplicável à matéria permite concluir, de forma objetiva e segura, que a simples permanência de um locatário em um imóvel por um longo período, ainda que superior a quinze anos, não lhe confere o direito de pleitear a aquisição da propriedade por meio da usucapião.

A posse exercida pelo inquilino em virtude de um contrato de locação é, por sua natureza jurídica, precária e desprovida do requisito essencial do animus domini. O locatário possui o bem em nome do locador, reconhecendo a supremacia do direito de propriedade deste, o que é incompatível com a posse ad usucapionem. O tempo de duração da locação, por mais extenso que seja, não tem o condão de transformar, por si só, essa posse precária em uma posse qualificada para a usucapião.

A única e excepcional hipótese em que um locatário poderia, em tese, iniciar a contagem de prazo para usucapir seria mediante a comprovação de um ato inequívoco, público e ostensivo de interversão do caráter da posse, pelo qual ele romperia a subordinação jurídica com o proprietário e passaria a exercer uma posse exclusiva e com intenção de dono. Ausente a prova de tal ato, a posse mantém seu caráter original de posse locatícia.